O Evangelho segundo Lucas: O caminho do discipulado
O Evangelho segundo Lucas é uma narrativa bastante particular, pelo fato de ser parte de uma obra maior: a chamada obra lucana (Lc-At). Ainda que o terceiro evangelho seja um dos três sinóticos, o que, sem dúvida, o aproxima dos relatos segundo Marcos e segundo Mateus… deve-se sublinhar a sua particularidade literária, exegética e teológica. Os quais emergem em sua grande maioria da compreensão do autor de dividir a sua obra em duas fases distintas, porém, intimamente ligadas e inter-relacionadas.
Diversos aspectos da obra salvífica de Jesus de Nazaré, o Messias (Cristo) Morto e Ressuscitado, são inteligentemente distribuídos ao longo dessas duas fases histórico-teológico-literárias. Por exemplo: 1) a questão do derramamento do Espírito; 2) a inserção dos Samaritanos na herança de Judá (do Messias judeu); 3) a dimensão universal da salvação (o anúncio aos gentios), etc.
I – A inclusão (moldura) literária
1) O Evangelho lucano:
A) Começa em Jerusalém, no Templo: Zacarias recebe o anúncio do nascimento de seu filho (João, o batista) – Lc 1,8-9;
B) Termina em Jerusalém, no Templo: Após as últimas instruções do Ressuscitado e da sua Elevação, os discípulos se dirigem ao Templo para orar e dar graças – Lc 24,52-53)
2) O Livro de Atos dos Apóstolos:
A) Começa em Jerusalém: Jesus ressuscitado aparece aos seus discípulos por 40 dias falando do Reino de Deus – At 1,3; “Permanecei em Jerusalém… recebereis o Espírito Santo e sereis minhas testemunhas a começar por Jerusalém, Judeia, Samaria e até os confins da terra” (1,8).
B) “Termina” em Roma, capital do Império, [compreendida como a “extremidade da terra” (cf. 1,8)], onde se encontra Paulo “proclamando o Reino de Deus e ensinando tudo que se refere ao Senhor Jesus Cristo…” (At 28,31).
II – O tema da Salvação
A primeira menção ocorre no Magnificat, o cântico de Maria, quando se descreve a Deus como Salvador: “A minha vida glorifica o Senhor e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador…” (Lc 1,46-47). Este Cântico lucano recorda Is 43,3; 45,15.21).
Desde suas origens como povo eleito, Israel conhecia Deus como aquele que Salva (Ex 14,13.30). Depois da passagem pelo Mar, Moisés e o povo cantam “Minha força e meu canto é o Senhor, Ele se tornou minha salvação” (Ex 15,2).
A Escritura é fundada sobre a compreensão de Deus como aquele que salva Israel, sobre o ato histórico da libertação de Israel da escravidão do Egito. A memória deste ato de salvação torna-se o tipo, o paradigma, de todo tipo de salvação futura operada por Deus em favor de Israel. Torna-se, portanto, a promessa e a esperança da salvação futura no tempo (dimensão histórica) e no fim dos tempos (dimensão escatológica).
O Deus de Israel é o Deus da Salvação (ou das salvações). Em realidade, para Israel não existe outro Salvador a não ser Deus (Is 43,11; Os 13,4). Ainda que Ele envie salvadores humanos nos tempos de crise (Jz 3,9.15; Is 19,20; Ne 9,27; e At 7,25). Deus promete que enviará um Rei Messias que salvará Israel e reinará para sempre (Is 9,1-6; Jr 23,5-6; Dn 7,13-14). A Salvação de Deus não é, portanto, somente um evento histórico e passageiro, mas é uma salvação permanente, constante e eterna (Is 45,17; 51,6-8).
Nos Evangelhos sinóticos, somente Lucas utiliza o título de Salvador que é atribuído a Jesus de Nazaré. Contudo, Lucas sublinha que foi Deus que o constituiu Salvador. Com exceção de Jo 4,22, somente Lucas utiliza entre os evangelistas a palavra “salvação”.
O anjo anuncia aos pastores de Belém… “hoje, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor (Lc 2,11).
Zacarias canta na sua profecia (3x):
1) O Senhor Deus de Israel suscitou um “chifre” (força) de Salvação… para nós na casa de David…
2) “Conforme falou pela boca dos santos profetas… que nos salvaria de nossos inimigos e das mãos daqueles que nos odeiam…” (Lc 1,68-71);
3) Diz ainda que: “… seu filho João preparará os caminhos do Senhor… para dar conhecimento da Salvação ao povo pelo perdão de seus pecados, pela sua misericórdia, quando nos visitará… com o sol nascente… que brilhará sobre aqueles que estão na escuridão e a sombra do morte.. para guiar nossos passos no caminho da paz..”. (Lc 1,77-79).
Note-se a insistência lucano sobre o “Hoje…” é o dia da Salvação:
1) Hoje… nasceu para vós um salvador…. (Lc 2,11)
2) Hoje… se cumpriu a Escritura que acabastes de ouvir (Lc 4,21)
3) Hoje… a salvação entrou nesta casa (Lc 19,9)
4) Hoje… estarás comigo no Paraíso… (Lc 23,43)
Segundo Lucas, a Salvação Divina oferecida por meio do seu Filho, Jesus de Nazaré, o Messias morto e ressuscitado, é permanente, é presente, se realiza no hoje da história humana, no hoje da vida de cada pessoa que se abre à comunhão com Ele.
Vejamos o esquema sinótico-lucano:
Quadro síntese – Esquema dos Evangelhos Sinóticos
Mt |
Mc |
Lc |
|
Relatos da Infância |
Genealogia: 1,1-17
1,18-2,23 |
_______
_______ |
Prólogo: 1,1-4
1,5-2,52 |
Preparação para o ministério público de Jesus |
3,1-4,11 |
1,1-13
|
3,1-4,13
Genealogia: 3,23-38 |
Ministério de Jesus na Galileia
|
4,12-18,35
cura de 2 cegos: 9,27-31 confissão de Pedro 16-13-20 |
1,14-9,50
cura 1 cego: 8,22-26 confissão de Pedro 8,27-30 |
4,14-9,50
_____
confissão de Pedro** 9,18-21 |
Viagem de Jesus para Jerusalém
|
19,1-20,34
cura 2 cegos: 20,29-34
viram de novo e seguiram-no |
10,1-52
cura 1 cego: 10,46-52
viu de novo e seguia Jesus pelo caminho
|
9,51-18,43
cura 1 cego: 18,35-43
viu de novo e seguiu Jesus |
Em Jerusalém:
Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus |
Entrada em Jerusalém: 21,1-9 (10-11)
21,1-28,20 |
Entrada em Jerusalém: 11,1-10(11)
11,1-16,20 |
Entrada em Jerusalém: 19,29-38(39-40)
19,29-24,53 |
No relato lucano não há repreensão a Pedro (Note-se que Pedro não questiona Jesus). O mesmo ocorre no relato do Monte das Oliveiras (22,39-46). Da mesma forma durante a Ceia derradeira Jesus afirma que orou por Pedro (22,28-34).
Aspectos teológicos específicos do Evangelho segundo Lucas:
1) Os Relatos da Infância (diferentes de Mt)
- São uma síntese teológica de toda a obra Lucana (Lc-At)
- Começam no Templo e terminam no Templo (Jerusalém)
- São 7 relatos (incluídos 4 cânticos: Magnificat; Benedictus; Nunc dimittis e Glória)
- Existe um paralelismo “desigual” entre João Batista e Jesus de Nazaré (Este último é maior do que o primeiro)
- O ponto central dos relatos é a Apresentação de Jesus no Templo (Simeão e Ana se encontram com o menino no Santuário)
- A alegria e o júbilo são características marcantes em toda a narrativa.
- Sublinha-se a ação do Espírito Santo: todos os personagens dos relatos da infância estão cheios do Espírito; suas ações e cânticos estão marcados pelo júbilo e pela ação do Espírito.
2) A viagem (a subida) para Jerusalém recebe destaque teológico (Lc 9,51-18,43).
- Lucas elabora uma catequese (com caráter pedagógico e progressivo)
- Quanto às parábolas do Reino, deve-se destacar o ensinamento lucano sobre a Misericórdia divina (Lc 15): as parábolas exclusivamente lucanas: A ovelha perdida (vv.1-7); a moeda perdida (vv.8-10); o filho perdido (vv.11-32), os três são reencontrados.. há festa, banquete. Há páscoa, vida nova (ressurreição).
- A presença das mulheres: Maria, Elisabeth, Ana (Lc 1-2); Maria Madalena, Joana, Susana (8,1-3).
- Lucas é o evangelista que mais sublinha o ensinamento sobre a pobreza e a centralidade da evangelização dos pobres (Lc 4,16ss). Para Lucas, a questão da riqueza e o acúmulo de bens é um obstáculo que impede a aproximação do Reino de Deus e bloqueia a participação no mesmo (Lc 12,33-34; 14,33; 16,1-13; At 2,42-47; At 4,32-37). Nesta perspectiva, é paradigmático o relato do Rico (sem nome) e do pobre Lázaro = 16,19-30).
- Jesus sobe a Jerusalém para enfrentar e submeter-se à Paixão e Morte de Cruz (Lc 9,51).
- Porém, ele adverte aos seus discípulos.. “Ao terceiro dia, O Filho do Homem ressuscitará”! (3 anúncios – Primeiro: Lc 9,22; Segundo: Lc 9,43b-45; e o Terceiro: Lc 18,31-34)
3) A Paixão
- Após o primeiro anúncio da Paixão e ressurreição, Lucas omite a repreensão (censura) a Pedro (Mc 8,32b-33: Mt 16,22-23)
- Após o Terceiro anúncio da Paixão e ressurreição, Lucas omite o pedido dos filhos de Zebedeu (Mt 20,20-23; Mc 10,35-40)
- Durante a oração de Jesus no Jardim, antes de sua prisão, ora ao Pai.. seus discípulos dormem. Porém, Jesus, segundo Lucas, Chama a atenção seus discípulos uma única vez (diferente de Mc e Mt). Além disso, note-se que Jesus não nomeia a Pedro.
- Ainda, deve-se lembrar que durante a ceia pascal, Jesus afirma que orou por ele para livrá-lo de Satanás (Lc 22,31-34).
- Na crucificação: os dois ladrões insultam Jesus (Mt, Mc, Jo)… Porém, Segundo Lucas.. há um diálogo entre os crucificados.
3) Os relatos referentes ao Senhor Ressuscitado
-
- Todos os relatos são descritos em Jerusalém.
- O relato paradigmático lucano: A caminho de Emaús. Uma catequese, um processo de reconhecimento do crucificado-ressuscitado, à luz das Escrituras, no partir do pão. Ele está vivo… e caminha conosco…!
Estudo elaborado por Pe. Boris Agustin Nef, professor de teologia bíblica na P.U.C de São Paulo.